Fichamento
SÜSSEKIND,P.O sublime e o expressionismo abstrato. Curitiba, São Carlos, dois Pontos, vol. 11, n. 1, p.183-203, abril, 20
…………………………………………………………………………………………………………..
Duas hipóteses
[...]A primeira hipótese trata do expressionismo abstrato como o ápice do movimento modernista, tem como referência as ideias do crítico norte-americano Clement Greenberg. Já a segunda hipótese, a respeito de um vínculo entre o expressionismo abstrato e a estética do sublime, se baseia especialmente nas reflexões de dois autores: outro crítico norte-americano, Robert Rosenblum, e o filósofo francês Jean-François Lyotard.
[...]Rosenblum vincula a pintura expressionista americana dos anos 1940 e 1950 ao romantismo, em vez de enfocar a rejeição do “vocabulário geométrico” e da “estrutura intelectual” que caracterizava a tradição cubista (ROSENBLUM, 1999, p. 78). [...] A ideia de Rosenblum é que eles seguiram uma estética do sublime, assim como a pintura romântica se propusera a fazer no âmbito da arte figurativa.
Lyotard defende uma tese semelhante, mas especificamente voltada para Barnett Newman, um dos pintores ligados ao expressionismo abstrato americano, e para a questão das vanguardas. [...] O primeiro texto propõe explicitamente esta tese histórica: “A obra de Newman pertence à estética do sublime que Boileau introduziu com sua tradução de Longino, a qual se elaborou lentamente na Europa, desde o fim do século XVII, e da qual Kant e Burke foram os analistas mais escru- pulosos...” (LYOTARD, 1990, p. 90).
[..] esse esquema ressalta tanto a importância de Greenberg como fundamento de explicação da arte moderna, quanto a importância do expressionismo abstrato nessa explicação.
2. O modelo greenberguiano
Em seu livro Após o fim da arte, de 1996, quando explicita o modo como concebe a tradição teórica que pretende deixar para trás, Danto afirma: “a história da arte ocidental se divide em dois episódios principais, os quais chamo de episódio de Vasari e de episódio de Greenberg” (DANTO, 2006, p. 138). O que identifica [..] é sua natureza progressiva, ou seja, o fato de se tratar de narrativas que explicam a evolução da arte ao longo do tempo, vinculando história e criação artística segundo determinados parâmetros. Para Danto, Giorgio Vasari estabelece o modelo de teoria da arte baseado na noção clássica de mímesis. Seu livro A vida dos mais eminentes pintores, escultores e arquitetos italianos, de meados do século XVI, caracterizaria um período em que a compreensão da arte estava fundada na ideia de uma verdade visual: na capacidade que a pintura tinha de representar com exatidão as formas do mundo, o espaço tridimensional. Com isso, como comenta o filósofo, as fórmulas usadas por Vasari para elogiar as pinturas estavam ligadas à precisão na identificação com as coisas representadas, por exemplo, ao fato de uma figura humana pintada em um afresco de Giotto (Ilustração 19, p.223) ou em um quadro Da Vinci dar a impressão de ser uma pessoa de verdade, viva, feita de carne e osso (Cf. DANTO, 2006, p. 57).
Assim, o critério para a avaliação e o elogio de uma obra de arte seria a perfeita ilusão criada pela imitação da realidade. E, segundo o esquema proposto por Danto para dividir a história da arte em dois modelos teóricos, foi essa noção de “efeito ilusionista” que orientou a concepção da prática artística pelo menos até meados do século XIX, de modo que a evolução das técnicas e dos movimentos pictóricos pode ser avaliada como a conquista de uma capacidade cada vez mais apurada de representação mimética.
Ora, a noção de arte moderna, para designar o novo período iniciado no final do século XIX, surgiu quando a narrativa vasariana não podia mais explicar o que os artistas produziam[...] essa arte não se baseava mais nas ideias de verdade visual ou de representação perfeita do mundo visível.
Apesar disso, a arte moderna também é explicada por uma grande narrativa histórica, segundo a qual os pintores impressionistas propuseram um questionamento da tridimensionalidade na pintura a partir da concepção de que os dados visuais não passam de cores. [...] Nesse sentido, um movimento como o cubismo, por exemplo, pode ser pensado como um passo decisivo para a arte do século XX por problematizar a tridimensionalidade e por resultar em quadros nos quais a identidade dos objetos tende a desaparecer, abrindo caminho para a pintura abstrata.
[...]no século XX a pintura dos herdeiros desse movimento assumiu como seu lugar próprio a superfície, ou planaridade, no lugar da representação mimética do espaço tridimensional. [...] para Greenberg, a visão do modernismo como um processo evolutivo que caminha para a abstração se baseia na teoria da arte formulada por ele. Assim, segundo Danto, “a passagem da arte pré-modernista para a modernista, se concordarmos com Greenberg, foi a passagem das características miméticas para as não miméticas da pintura” (DANTO, 2006, p. 10).[...]
Greenberg abriu mão dos parâmetros críticos ainda dominantes nas primeiras décadas do século XX e propôs novos parâmetros, que permitiam avaliar a pintura modernista e a arte abstrata. [..] Danto o considera “incontestavelmente o mais importante crítico de arte kantiano de nosso tempo” (DANTO, 2006, p. 93). [...]“Identifico o modernismo com a intensificação, a quase exacerbação dessa tendência autocrítica que teve início com o filósofo Kant” (GREENBERG, 1997, p. 101), autor considerado em seguida “o primeiro verdadeiro modernista”, por ter sido “o primeiro a criticar os próprios meios da crítica”.
[...]Greenberg propõe uma revolução da metafísica, nos moldes da filosofia crítica, logo uma ruptura com o pressuposto de que o conhecimento é definido pelos objetos (Cf. KANT, 1989, pp. 19-20). [...] a pintura também não se definia mais pelos objetos. E essa ruptura tem como consequência um processo reflexivo na arte, um processo de autoconsciência, de exploração e de crítica dos seus próprios procedimentos, condições de possibilidade, meios de expressão. Assim, a pintura deveria ser orientada pela elaboração “pura” de sua própria essência.
É essa noção de uma autodefinição da arte que justifica a hipótese inicial que propus neste texto, de que a pintura do expressionismo abstrato americano constitui o ápice no desenvolvimento do modernismo. Pois, na narrativa greenberguiana, a arte abstrata europeia ainda sofria a influência da tradição figurativa e da chamada “pintura de cavalete”. [...] Só com de Kooning, Pollock, Rothko, Still, Newman, entre outros expressionistas em atividade nos EUA das décadas de 1940 e 50, o abstracionismo teria explorado uma linguagem pictórica “pura”, já livre do peso da tradição e voltada exclusivamente para a explicitação e a crítica dos procedimentos da própria pintura.
3. O sublime e a pintura
Quando se consideram as teorias clássicas sobre o sublime, como a de Burke ou a de Kant, é problemático até mesmo associar essa categoria estética à arte.
[...] o tratado antigo, que a versão de Boileau tornou acessível aos teóricos modernos da estética filosófica, usava o termo “sublime” para designar passagens extraídas da poesia, ou de obras em prosa que possuem intensidade poética. Trata-se de certos trechos de Homero, por exemplo, mas também de Demóstenes ou de Platão, que têm como característica maravilhar, arrebatar, persuadir com uma força irresistível os ouvintes ou leitores (LONGINO, 2005, p. 71). O sublime se definia por essa surpresa arrebatadora, pelo extraordinário que surge em momentos pontuais da escrita, repentinos e intensos “como um raio”. O autor do tratado recorre a metáforas assim, ligadas às forças da natureza, para definir o arrebatamento que aquelas passagens poéticas produzem: elas seriam incendiárias como o fogo, ou impactantes como uma tempestade.
Pois bem, o debate posterior, que tem Burke e Kant como seus re presentantes mais destacados, faz uma espécie de inversão desse uso do termo, passando a chamar de sublimes justamente fenômenos da natureza semelhantes a esses que eram mencionados metaforicamente, no tratado traduzido por Boileau, para acentuar características de obras artísticas humanas. Considero que essa inversão, por si só, já torna discutível uma associação direta do sublime pensado nas teorias modernas à arte. Mas, no caso específico de uma arte espacial como a pintura, cujas obras se restringem aos limites da tela, essa associação se revela ainda mais problemática, porque a princípio um quadro não se mostra adequada para o tipo de “prazer negativo” ou de “movimento de ânimo” com que as teorias mais estudadas do século XVIII caracterizam o sublime.
A Investigação sobre a origem das nossas ideias do sublime e do belo, de Burke, diferencia um prazer positivo, com objetos pequenos, delicados, harmoniosos, claros, suaves, de um prazer negativo, com objetos grandes, massivos, escuros, indefinidos, de formas ásperas. A explicação do primeiro tipo de prazer, ligado ao belo, não representa um grande desafio, mas o sublime impõe um problema teórico importante: como justificar que a contemplação de objetos a princípio ameaçadores, perigosos, portanto propícios a ocasionar dor, possa gerar prazer? Em outras palavras, que prazer é esse que pode surgir diante de coisas como tempestades, o barulho de uma artilharia, uma catarata, animais ferozes ou venenosos, a escuridão etc.?
Na teoria de Burke. para compreender o “prazer negativo”, composto por duas sensações sucessivas: a ideia do perigo e o alívio por não ser diretamente afetado pela ameaça. Ou seja, quando o observador está em segurança, ele contempla coisas assustadoras e perigosas. E, segundo a Investigação, seu deleite provém justamente desse alívio em relação à ameaça e ao perigo. Quanto maior for o perigo, mais forte a emoção causada, como Burke explica:
Tudo o que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atue de um modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime, isto é, produz a mais forte emoção de que o espírito é capaz. [...] Quando o perigo ou a dor se apresentam como uma ameaça decididamente iminente, não podem proporcionar nenhum deleite e são meramente terríveis; mas quando são menos prováveis e de certo modo atenuadas, podem ser – e são – deliciosos, como nossa experiência diária nos mostra (BURKE, 1993, p. 48).
Ao contrário do que ocorre com as coisas belas, imediatamente prazerosas, o sentimento de prazer do sublime se dá em dois tempos. Há primeiro um desprazer, ligado ao terror, que gera em um segundo momento o prazer, ligado ao alívio. Se o que caracteriza o primeiro momento é o fato de algo se apresentar como aterrorizante, o sentimento do sublime depende das características que geram o terror, como obscuridade, incerteza, indefinição. [...] Os fenômenos que despertam com mais força a sensação do sublime seriam aqueles que impõem o terror por meio da ameaça implicada na ideia da morte. Como afirma Virgínia Figueiredo, em seu artigo “O sublime explicado às crianças”:
...se há algum sujeito, alguma subjetividade no sublime, ela está à beira da desagregação, do dilaceramento, pois, a paixão que define o Sublime está entre aquelas mais fortes: a paixão de conservar a vida. Essa é uma emoção que só sentimos quando estamos ameaçados de perder o que nos é mais precioso, i.e., a vida. O medo mais extremo é sempre medo de morrer. Se o desdobramos empiricamente, ele se torna medo das trevas, da solidão, das grandes extensões, das alturas excessivas – todos esses medos são enumerados e examinados no livro de Burke. Poderíamos resumir a fórmula geral do sublime da seguinte maneira: uma relação de ameaça diante da grandeza do que quer que seja, pois nela pressentimos uma potência capaz de nos destruir (FIGUEIREDO, 2011, p. 40).
Nesses termos, a transposição do sublime para o campo da arte, em geral, parece bastante discutível. Uma primeira observação sobre isso, com base na Investigação, é que certamente as chamadas artes temporais cumprem melhor a tarefa do que as artes espaciais. Ao considerar o sublime na arte, Burke chama a atenção para a música instrumental, por exemplo, cujos efeitos “reconhecidos e poderosos” demonstram que se pode prescindir da clareza das imagens para incitar as paixões. Ele conclui: “Na verdade uma grande clareza pouco contribui para incitar as paixões, pois é de certo modo inimiga de todo e qualquer entusiasmo” (BURKE, 1993, p. 68). Nesse sentido, a pintura se mostra especialmente incapaz de suscitar o sentimento do sublime, porque trabalhar com imagens claras e definidas, nos limites do quadro. Ou melhor, a princípio essa arte contraria mesmo o requisito básico para a tarefa, que é a falta de limites e a obscuridade das coisas aterrorizantes. Como afirma o Burke:
[...] dificilmente alguma coisa pode impressionar o espírito por sua grandiosidade, se não se aproxima, de algum modo, da infinitude, o que nenhuma pode fazer enquanto somos capazes de perceber seus limites. Ora, ver distintamente um objeto e perceber seus limites é a mesma coisa. Uma ideia clara é, portanto, um outro nome para uma ideia pequena. (BURKE, 1993, p. 70)
[...] No caso da “Analítica do sublime” elaborada por Kant na Crítica da faculdade do juízo, essa transposição para a pintura se mostra igualmente discutível. O sentimento do sublime diz respeito a um prazer, despertado por certos tipos de fenômenos, no qual a imaginação opera sem a coação do entendimento. Os fenômenos a que o filósofo se refere para exemplificar situações que despertam o prazer do sublime não são muito diferentes daqueles mencionados em teorias anteriores: rochedos, nuvens, vulcões, oceano revolto etc. E os exemplos têm descrições bastante dramáticas e ricas em adjetivos, levando em consideração o estilo argumentativo do autor. Kant descreve os rochedos audaciosos que “sobressaem, por assim dizer, ameaçadores”. As “nuvens carregadas” acumulam-se no céu, “avan- çando com relâmpagos e estampidos”, enquanto os vulcões são aqueles que se mostram “em sua inteira força destruidora”, e os furacões são considerados junto com “a devastação deixada para trás” (KANT, 1993, p. 107). O texto menciona também as pirâmides do Egito e a catedral de São Pedro, mas tratando-as como objetos assustadoramente grandes, sem ressaltar sua especificidade artística (KANT, 1993, p. 98).
[...] O sublime, em contrapartida, implica uma mistura de atração e repulsa, uma inibição inicial das forças vitais, seguida por uma efusão dessas forças, por isso um estado de agitação e conflito (KANT,1993, p. 90).
Assim, chama-se impropriamente de sublime o rochedo, a nuvem de tempestade ou o oceano revolto, uma vez que não é a determinação ou forma dessas coisas que gera o sentimento de prazer, mas sim a combinação da incapacidade de apreendêlas com o conflito gerado por essa incapacidade e com a agitação que resulta desse conflito no ânimo do observador. Em outras palavras, não se definem como sublimes os próprios fenômenos, mas se chama assim o movimento gerado pelo caráter informe e excessivo com que esses fenômenos surpreendem quem está diante deles.
A Crítica da faculdade do juízo analisa dois tipos de sentimento de sublime: o sublime matemático e o sublime dinâmico (Cf. KANT, 1993, p. 93). Ambos resultam de um conflito entre a faculdade da imaginação e a faculdade da razão, mas o tipo matemático diz respeito à grandeza, enquanto o tipo dinâmico diz respeito à força. [...]
Portanto, o movimento de ânimo que constitui o sentimento do sublime é provocado pelo esforço da imaginação na tentativa de esquematizar algo que. [...]Trata-se, assim, de fenômenos nos quais a imagem só está presente como esquema, ou como tentativa de esquematização, mas sem chegar a ter um aspecto determinado.
[...]Assim, evidentemente, uma alternativa que a pintura tem para criar o sentimento do sublime é representar, de preferência em telas grandiosas e perfeitamente realistas, aqueles fenômenos naturais a que Kant se refere, como penhascos ou tempestades, diante dos quais o homem se sente ínfimo e frágil. Aliás, pode-se considerar que é isso que os pintores românticos do século XIX, como Caspar Friedrich, William Turner ou James Ward, se propuseram a fazer. E esse rumo da arte romântica experimentou um grande desenvolvimento tanto do ponto de vista técnico – na capacidade de representar de modo realista fenômenos assim e de captar sua intensidade ou amplitude –, quanto do ponto de vista espacial, na elaboração de telas imensas, elas mesmas grandiosas.[...]
4. O sublime abstrato
[...] o pintor que se destaca no texto “O sublime abstrato”, em relação a essa linhagem de filiações e analogias entre o abstracionismo e o roman tismo, é Barnett Newman, justamente o artista que se propôs explicitamente a elaborar uma estética do sublime e que escreveu sobre esse tema. Assim, o processo que resultou no quadro de Newman comentado por Rosenblum remete não só ao título desse quadro, Vir Heroicus Sublimis, de 1950, mas também ao texto “O sublime é agora”, publicado pelo artista em 1948.
Trata-se de um texto que valoriza a produção artística americana de sua época, segundo seu autor baseada justamente no impulso de toda a arte moderna, que seria o de “destruir a beleza” (NEWMAN, 1992, p. 581). O fracasso da arte europeia [...] deveria à força de sua tradição,[...] o diagnóstico do pintor é que a arte moderna europeia foi incapaz de criar uma nova imagem sublime, porque não era possível para ela abandonar completamente as imagens e as figuras do Renascimento, a não ser rejeitando-as em função de “um mundo vazio de formalismos geométricos”. Em contrapartida, Newman elogia a arte americana por considerá-la livre do ideal de beleza e plasticidade da tradição:
Acredito que aqui na América alguns de nós, livres do peso da cultura europeia, estamos encontrando a resposta por meio de uma completa negação de que a arte tenha qualquer preocupação com o problema da beleza e de onde encontrá-la. A questão que surge agora é como, se estamos vivendo numa época sem uma lenda ou mitos que possam ser chamados de sublimes, se recusamos admitir qualquer exaltação nas puras relações, se recusamos viver no abstrato, como podemos criar uma arte sublime (NEWMAN,1992, p. 581).
A “resposta” artística mais direta do próprio pintor, associada às suas refle- xões em “O sublime é agora”, [...] reflexão, Rosenblum aponta um novo caminho para o sublime abstrato. O quadro em questão exploraria exatamente esse caminho próprio que, ao contrário do que ocorre em relação a Still, Rothko e Pollock, desafia qualquer comparação com representações pictóricas de fenômenos natu- rais, portanto com os quadros sublimes do romantismo (ROSENBLUM, 1999, p. 78).
[...] A proposta é que o espectador, próximo da tela, experimente uma espécie de mergulho no vermelho, deixando a cor cercá-lo completamente e ocupar todo o campo de visão. E o pintor trabalha com variações sutis de tonalidade para criar a sensação de transbordamento dos limites.
Para Rosenblum, essa imensa pintura não pode ser relacionada a representações anteriores do espaço e da luminosidade, apenas a uma experiência direta da natureza, como ele considera que Newman se propôs a fazer ao declarar que tinha intenção de visitar a vastidão ameaçadora da tundra ártica. O pintor procuraria, assim, a sensação de estar cercado por todos os lados, no centro de uma vastidão espacial aparentemente infinita. Mas a expressão pictórica dessa sensação não constrói uma imagem determinada, nem representa a vastidão de um lugar natural. [...]
5. O sublime e o tempo
[...] O que está por trás dessa consideração é uma interpretação da pintura de Newman como uma “resposta inesperada”, no contexto das vanguardas e do expressionismo abstrato. Basicamente, Lyotard afirma que um quadro desse artista não comunica nada, não se constitui como uma mensagem. O quadro “não anuncia nada, é o próprio anúncio” (LYOTARD, 1990, p. 86). Em outras palavras, não é mais possível distinguir na arte de Newman as várias dimensões do tempo que fazem parte da pintura: o tempo da produção do quadro pelo pintor, o da percepção pelo observador, o da situação reproduzida na tela (a história que o quadro conta) e o da circulação entre o pintor e a obra (o quanto a obra levou para chegar até seu espectador). É como se o pintor condensasse essas diferentes dimensões temporais, de modo que “o tempo é o próprio quadro” (LYOTARD, 1990, p. 85).
[...] Não há mais um espectador que observa o quadro com distanciamento. E Lyotard compara a experiência desse tipo de pintura com a audição: “Eu (o observador) sou apenas um ouvido aberto ao som que chega do silêncio, o quadro é esse som, um acorde” (LYOTARD, 1990, p. 89).
Tendo como referência as teorias a respeito do sublime formuladas por Burke e Kant, Lyotard procura dar uma resposta para aquele problema da dificuldade de transpor para a pintura a categoria estética do sublime tal como concebida por esses filósofos.
Com relação a Kant, a solução é encontrada num “rasgo de inspiração quase involuntário”, como está escrito em “O instante, Newman” (LYOTARD, 1990, p. 91). Pois a princípio a posição de Kant é contrá- ria à concepção de um possível sublime na pintura, uma vez que a força excessiva ou a grandeza absoluta que caracterizam a experiência do sublime não poderiam ser apresentadas espacialmente num quadro. Lyotard recorre, contudo, à noção kantiana de “apresentação negativa” do suprassensível, uma possibilidade de evocar de alguma maneira o inapresentável. Essa seria a indicação da teoria kantiana para as vanguardas artísticas: a apresentação que não apresenta nada e que por isso mesmo evoca o ina- presentável “anuncia as saídas abstracionistas e minimalistas pelas quais a pintura tentará escapar à prisão figurativa” (LYOTARD, 1990, p. 91).
“O sublime e a vanguarda” desenvolve mais detidamente a avaliação da teoria de Kant, destacando a definição do sublime como apresentação negativa do infinito ou do absoluto. Nesse sentido, o texto menciona a concepção de que “a insuficiência das imagens é um sinal negativo da imensidão do poder das ideias” (LYOTARD, 1990, p. 103). Exatamente essa concepção permite vincular a teoria kantiana à discussão sobre a pintura abstrata. Pois, se o sentimento do sublime é despertado por fenômenos que não podem ser captados pela imaginação, isto é, justamente pelo informe e não pela forma delimitada, a problematização da imagem na pintura abstrata seria uma maneira de transpor para a arte, de algum modo, a possibilidade de uma “apresentação negativa”. Em vez de uma imagem, a pintura buscaria como que um movimento do ânimo, marcado pela “extrema tensão (a agitação, diz Kant) que caracteriza o pathos do sublime, sendo diferente do sentimento calmo do belo” (LYOTARD, 1990, p. 103). Lyotard chega, assim, a uma conclusão sem mediações históricas que identifica o filósofo alemão moderno como uma abertura para as pesquisas estéticas da arte abstrata e minimalista do século XX. Ele conclui: “o vanguardismo germina na estética kantiana do sublime” (LYOTARD, 1990, p. 103).
[...]“O sublime e a vanguarda” leva adiante esse argumento, defendendo que o intento da Investigação seria “mostrar que o sublime é provocado pela ameaça de nada ocorrer” (LYOTARD, 1990, p. 104). Desse modo, em sua relação com o tempo, o sublime não consiste no conteúdo daquilo que ocorre, mas na manifestação imediata, na própria ocorrência. Haveria uma antecedência dessa manifestação em relação a seu conteúdo, à sua conversão em um fato determinado que então faz parte do passado: “Que ocorra antecede sempre, de algum modo, a questão que incide sobre o que ocorre” (LYOTARD, 1990, p. 96). A imagem usada para definir a experiência dessa antecedência é a de uma pergunta que procura dar conta da consciência do tempo: a pergunta “O que aconteceu?”, formulada para definir os fatos, ou seja, o conteúdo determinado das ocorrências.
[...] a metáfora do ponto de interrogação diz respeito ao caráter indeterminado da temporalidade, no presente, antes de cada acontecimento, ou antes de cada instante presente ser convertido em passado. Essa indeterminação é o que desperta um sentimento de angústia, relacionado à eventualidade de nada acontecer. Ela indica a interpretação da tese de Burke a respeito do terror como ideia da morte: na versão de Lyotard, o indeterminado da temporalidade seria o ponto de interrogação do agora, no qual impera a angústia de que talvez possa não ocorrer nada.
[...] No instante da dúvida se descobre o “prazer de acolher o desconhecido”, a alegria provocada pelo sentimento de existir, pela positividade do acontecimento, pelo agora como possibilidade. Lyotard descobre assim um sentimento contraditório, um misto de angústia e alegria, de prazer e desprazer. Ora, ele afirma, o nome do sentimento contraditório que envolve prazer e dor consagrado pela estética do século XVIII é “sublime” (LYOTARD, 1990, p. 97).
[...] A interpretação proposta pelo filósofo é que o tempo, tal como o pintor o considera nesse caso, não é elaborado como tema da pintura, mas trazido para a apresentação do próprio objeto pictórico. Assim, é a “matéria cromática, sua relação com o material (a tela, por vezes deixada por preparar)” que “deve suscitar a surpresa admirável, a maravilha” da constatação de que “alguma coisa existe, em vez do nada”. Em outras palavras, o tempo é o próprio quadro.
[...] a pintura se mostra aqui como a arte na qual a ocorrência (il arrive) é a cor, o quadro. Com isso, o que Newman considerava como a busca de uma estética do sublime na arte americana, escapando dos grilhões impostos pelo ideal de beleza da arte europeia, diz respeito ao quadro pensado como aconteci- mento.[...]
As dimensões da imensa pintura de Newman conseguem desconcertar os espectadores e tirá-los de sua zona de conforto da contemplação estética tradicional. Esse recurso de proximidade, de quebra com o distanciamento, faz parte da experiência descrita por Lyotard: de que a cor, enquanto ocorrência, não é exprimível, não é um elemento dentro de um quadro a fim de compor uma imagem. “Para ser fiel a este deslocamento em que consiste talvez toda diferença entre o romantismo e a vanguarda ‘moderna’”, diz o filósofo, “seria necessário traduzir The sublime is now não por ‘o sublime existe agora’, mas por ‘agora, tal é o sublime’” (LYOTARD, 1990, p. 106). Isso significa que não há nesse quadro uma representação do sublime, não existe um outro, uma referência, um lugar para onde a obra remete. É desse modo que Lyotard reconstrói aquela espécie de surpresa que Burke tinha pensado como o alívio em relação ao terror. Trata-se de uma experiência eminentemente temporal: “Aqui, agora, acontece, eis o quadro”. [...] Agora, o que é sublime é que exista esse quadro, em vez do nada, é a ocorrência da pintura enquanto apresentação do inexprimível, do mergulho na cor como um mergulho no infinito.
Na obra de Newman, portanto, a elaboração do sublime pelo abstracionismo retoma em nova chave o tema elaborado pela pintura romântica. Seria possível dizer, com base nas considerações diversas de Rosenblum e Lyotard, que a pintura de Newman não pretende mais representar o sublime, mas suscitar a experiência do sublime.
[..]“O sublime é agora”, do próprio Newman, quanto nos ensaios que interpretam sua obra, a discussão sobre o sublime na pintura diz respeito a uma reflexão sobre a capacidade que a arte tem de expressar sensivelmente ideias, ou de trabalhar com o ilimitado, com o informe, com o infinito. [...] a questão do sublime implica, assim, não só uma consideração histórica, sobre a crise do belo artístico e os rumos da arte moderna, como também uma reflexão sobre os limites e as possibili dades da criação artística, sobre a relação entre arte e liberdade, ou sobre arte e temporalidade.
.
Referências bibliográficas
BURKE, E. 1993. Uma investigação sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Campinas: Papirus: Editora da Unicamp.
DANTO, A. 2005. A transfiguração do lugar-comum. São Paulo: Cosacnaify.
________. Após o fim da arte. 2006. São Paulo: Edusp.
doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 11, n. 1, p.183-203, abril, 2014
203
FIGUEIREDO, V. 2011. O Sublime explicado às crianças. Trans/Form/ Ação, Marília, v. 34, n.spe 2, p. 35-56, 2011.
GREENBERG, C. et al. 1997. Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
KANT, I. 1993. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Editora Forense.
________. 1989. Crítica da razão pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian. 2a edição.
LONGINO. 2005. “Do sublime”. In: A poética clássica. São Paulo: Cultrix.
LYOTARD. J.-F. O inumano. 1990. Lisboa: Editorial Estampa.
________. L’inhumian. 1988. Paris: Éditions Galilée.
NEWMAN, B. 1992. “The sublime is now”. In: HARRISON, Charles and WOOD, Paul (ed). Art in Theory 1900-2000: An Anthology of Changing Ideas. Oxford: Blackwell.
PLATÃO. República. 1993. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
ROSENBLUM, R. 1999. On modern american art. New York: Harry N. Abrams.
SCHILLER, F. 2005. Do sublime ao trágico. Belo Horizonte: Autêntica.